[trecho]
ARTHUR DORMIU EM TRIACASTELA em uma hospedagem rural. Chegou tão cansado que tudo o que conseguia pensar era em tomar um banho e dormir. Fizeram uma parada em um restaurante para peregrinos onde se deliciou com uma refeição farta, surpreso com a fome que estava. O sol apresentava-se inclemente naquele trecho, o que dificultava as conversas, afinal, tinham que poupar fôlego para prosseguir em sua jornada.
No dia seguinte seguiram por uma trilha de extrema beleza que passava pelo Monastério de Samos. O Monastério de São Julião de Samos fica em uma construção gigantesca com jeito de castelo, no qual convivem três estilos arquitetônicos: o tardo-gótico, o renascentista e o barroco. Sofreu vários incêndios no decorrer de sua história, o último em mil novecentos e cinquenta e nove, quando foi reconstruído. Não havia mais monges habitando a edificação, que atualmente abriga um centro educativo da Igreja e uma hospedaria para os viajantes do Caminho de Santiago.
Durante a visita ao monastério ele voltou a conversar com María, que vinha acompanhando a distância durante o percurso. Encontrou-se com ela quando esta passeava pelos elegantes jardins do claustro, onde uma estátua do santo que dava nome ao monastério erguia-se imponente, observando o gramado esmeralda onde cercas vivas formavam desenhos geométricos simétricos que, vistos de cima, formariam o desenho de uma grande cruz.
— Eu tentei não pensar em nada ontem à noite, confesso que não consegui — ele disse, puxando assunto.
— Ah, é? E o que sentiu?
— Nada, eu dormi. Estava terrivelmente cansado.
Ela riu:
— Tente por cinco minutos uma vez por dia. Depois de um tempo você consegue se livrar de todos os pensamentos. No começo será difícil e esses momentos de abstração total não vão durar mais do que um ou dois segundos.
— E aí? O que acontece?
— Só você pode responder a essa pergunta.
Resposta típica dos esotéricos, pensou. Quando não se tem resposta, a alternativa é apelar para esse sentimentalismo. Está dentro de você. Quando chegar a hora, você saberá.
— Que tatuagem é essa no seu braço? — perguntou, ainda curioso pela estranha estrela abrigando o símbolo do yin-yang.
— É um símbolo que eu criei. A esfera com oito pontas é chamada caosfera. No interior o yin-yang, simbolizando as duas forças fundamentais opostas e complementares que se encontram em todas as coisas: o yin é o princípio feminino, noite, Lua, a passividade, absorção. O yang é o princípio masculino, Sol, dia, a luz e atividade. Eu quis dizer que tudo está dentro da caosfera.
Arthur se calou e observou a estátua de São Julião de Samos. María era uma linda morena, mas suas ideias eram muito esquisitas, na verdade sentia que aquele sistema esotérico era incompatível com o que percebia como realidade. Quando o guia do grupo apareceu para lhes chamar, com sua bandeirola espetada na mala, o peregrino o seguiu disposto a se afastar de María no resto da viagem.
Seguiram para Sarria, onde o brasileiro reencontrou o conforto de um hotel. Tomou um banho, comeu um primoroso doble x-burger, pedido na recepção, tomou um relaxante muscular para aliviar a dor violenta na batata da perna e ao se deitar dormiu como uma criança.
* * *
O Caminho de Santiago continuou para Arthur com suas características intrínsecas: dor no corpo, principalmente nas pernas e pés, uma fome que Deus sabe de onde provinha, canseira e muitos, mas muitos momentos de introspecção. Não que ele tenha se isolado do grupo, mas depois de um tempo não dá mais ânimo para conversar, é preciso guardar o fôlego para as longas caminhadas, e os intervalos são curtos demais. Quanto mais se introjetava, mais percebia que havia algo na sua percepção de mundo que estava errada, mas não sabia dizer o que era. Por outro lado, crescia nele uma certeza a respeito das coisas que não preencheriam o vazio que sentia no peito: a religião católica não tocava sua alma nem mesmo ali naquele caminho santo e santificado, o esoterismo confuso de María menos ainda...
Já estava no sétimo dia de peregrinação, caminhando pelo caminho que liga Palas de Rei a Arzua, através de uma estrada de terra que, cortando a planície, dividia uma campina verdejante, observado por uma montanha cujo formato lembrava vagamente a crista de um tubarão, quando teve uma conversa interessante. Era uma mulher que devia ter mais de cinquenta e poucos anos, um pouco acima do peso, cabelos curtos e vermelhos, o rosto com muitas marcas de expressão gravadas, e olhos verdes e vivos. Ela se aproximou dele enquanto caminhava e lhe perguntou sobre as amizades que fizera no caminho, falando espanhol.
— Conheci muitas pessoas legais no caminho — respondeu, polidamente.
— Me chamo Mercedes, sou galega de Lugo. E você, de onde vem?
Imitando o modo como ela se apresentou, ele respondeu, sorrindo ante a figura carismática:
— Me chamo Arthur, sou brasileiro de São Carlos.
— Então, já alcançou a iluminação que estava procurando?
— Me perdoe a franqueza, mas falando assim soa meio… — fez uma pausa procurando a palavra, mas ela completou a sentença:
— Idiota? Essa é a palavra que procuras?
Ele assentiu.
— Sabe, brasileiro, eu percorro esse caminho há 14 anos e aprendi a perceber os tipos de caminhantes que encontro. A maioria das pessoas imagina que o caminho de Santiago é mais ou menos como a estrada de Damasco. Como se uma luz fosse irromper dos céus e lhe mostrar a direção para seguir em sua vida a partir daquele momento.
— Parece tão óbvio assim?
— Você me lembra meu filho. Houve um tempo em que ele ficou meio perdido, sem saber sua função no mundo.
Ele a fitou, surpreso. Depois disso contemplou o céu onde nuvens distantes anunciavam chuva nas próximas horas.
* * *
No décimo dia de viagem os peregrinos finalmente chegaram à Catedral de Santiago de Compostela. O grupo de Arthur entrou na nave principal e contemplou o Pórtico da Glória, esculpido por Mestre Mateo em pedra. O pórtico representa a Jerusalém celeste, tal como está descrita no livro do Apocalipse. É constituído por três arcos, um para cada nave da igreja. No arco da porta da direita, representa o Julgamento Final. No arco da porta da esquerda, episódios do Antigo Testamento estão representados. No arco central, no meio do tímpano, encontra-se o Cristo Pantocrator, um Cristo em toda a sua glória após o Julgamento Final. Cristo mostra os seus estigmas, em sinal de triunfo sobre a dor e a morte. O messias está rodeado pelos quatro evangelistas. Ao seu lado, encontram-se os anjos que seguram os símbolos da Paixão como a Cruz, e a coroa de espinhos. Dispostos em arco de circunferência (dentro da arquivolta), reconhecem-se os 24 velhos do Apocalipse, segurando, na sua maior parte, um instrumento de música: estão a tocar uma sinfonia em honra a Deus. Aos pés de Cristo, está o apóstolo de Compostela.
Os católicos entraram em filas para se confessar antes de penetrar no túmulo de Santiago. Havia confessionários em diversas línguas, para que os peregrinos de todo o mundo pudessem encontrar perdão para seus pecados. Ele não sentiu que tinha pecados a confessar e passou para o resto da visitação. Visitou o túmulo do apóstolo e as outras partes da catedral. A nave principal e outras partes nas quais se manteve o estilo romano, onde predominava a pedra e as alturas ciclópicas lhe pareceu mais belo e harmonioso do que as partes onde o ouro do barroco se imiscuiu, poluindo a paisagem com um sem número de adereços e panos e estátuas tão próximas umas das outras que dava a impressão de o céu ser um lugar apertado.
Na cripta experimentou a mesma sensação da Capela dos Milagres, porém intensificada de maneira espantosa. Havia algo ali que mesmo ele podia sentir na atmosfera. Saiu para uma praça e sentou-se em uma amurada que separava o pequeno jardim das ruas de pedra que circundavam a catedral. No jardim flores de tons róseos destacavam-se ante a imponência de tons pastel da catedral.
Ele se recordou de ter visto Ana na fila do confessionário em português. Não entendeu bem por que uma espírita precisava da bênção de um padre, mas guardou isso na seção de coisas sem nexo em algum lugar no seu cérebro.
— Olá, peregrino! — uma voz conhecida lhe chamou a atenção, era Mercedes, a ruiva galega com quem trocou meia dúzia de palavras no caminho.
Ele sorriu em retribuição:
— Olá. Que bom reencontrar você aqui!
— E então? Já é um novo homem?
Ele balançou a cabeça:
— Acho que não deve ser bem assim que as coisas funcionam, não é? Mas agora tenho bolhas nos pés.
Ela continuou sorrindo e lhe apresentou um cartão amassado.
— Deve valer alguma coisa ter pés calejados.
Arthur olhou para o cartão que pegou da mulher. O cartão era preto com as letras brancas em alto-relevo, a palavra F E R M I N em tipos Times New Roman, no verso um número de telefone:
— O que é isso?
— Se percorrer o caminho não te mudou, você deveria procurá-lo. Já que está aqui mesmo. Esse é Fermin, para você que é brasileiro, posso dizer que ele seria o Paulo Coelho galego.
— Um mago?
— Sim.
— Não sei se esoterismo é o que estou procurando, Mercedes.
— Ah, tá. E você veio até aqui buscar o quê? Uma explicação racional? A quem você está tentando enganar?
— Humm… Com todo o respeito, o que um mago pode fazer por mim?
— Não sei. Não sou maga. Sou uma boa católica. Para mim, trilhar esse caminho sagrado e orar aos pés de Santiago, o Grande, é suficiente para renovar minha fé. Eu não tenho dúvidas. Mas parece que isso é uma característica da minha geração, talvez seja a maneira como fomos criados, não sei. Vocês, jovens, agora têm acesso a tanta coisa que ficam perdidos, como se incapazes de decidir entre uma de uma porção de coisas, acabam por não escolher nenhuma.
Ele sorriu.
— Minha mãe dizia que muita televisão fazia mal à saúde — completou. — Ela não fazia ideia do que era essa tal internet — ela gracejou.
— E como seu filho está hoje?
— Ele não virou bruxo ou algo assim, se é isso que está pensando. O Fermin só o fez pensar com clareza, rever algumas de suas posições. Meu filho diz que ele é mais um oráculo do que um mago.
— Vou pensar.
— Pois pense, mas não diga dessa água não beberei, nem desse pão não comerei, e tenha calma, não se fez Roma em um dia. Visite Fermin, aproveite o que tiver que aproveitar, descarte o que tiver que descartar, afinal, não é tudo ouro, o que reluz.
A senhora colocou a mão em seu ombro e lhe deu um último sorriso antes de seguir para o interior da catedral:
— Deus o abençoe e Santiago o proteja.
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