mosaicos urbanos - trecho

O Náutilus de 20.000 Léguas Submarinas em versão steampunk


[às margens do tigre]


ARTURO PEGOU O LIVRO NA MESINHA DE CENTRO da casa de seu editor e olhou o volume com interesse. Era uma edição sui generis de 20.000 Léguas Submarinas, de Verne. Um tratamento gráfico primoroso, com ilustrações no estilo steampunk6. Não havia indicação de editora. 

— Esse é um trabalho que uns amigos do meu filho fizeram. Seu trabalho de conclusão de curso — Walter Mariot lhe entregou uma taça de vinho e sentou-se na poltrona à sua frente. 

— Design Gráfico, obviamente — continuou. — Um estupendo trabalho. 

Arturo assentiu: 

— Não tem editora? 

— Não, nunca vai ser publicado. Eles fizeram todo esse magnífico trabalho gráfico. Cinco rapazes. Entregaram-me tudo já formatado, e então, quando eu pergunto qual deles eu deveria creditar pela tradução, eles olharam um para o outro. 

Mariot fez uma pausa dramática. 

— Ninguém traduziu, simplesmente pegaram uma versão na internet. E acharam que estava bom, que era assim mesmo que se fazia. Tão acostumados que estavam em tudo perguntar ao doutor Google. Todo o trabalho foi descartado, mas fizeram esse outro aqui — ele disse entregando a Arturo outro exemplar que estava sobre a mesa, uma versão Dom Casmurro com ares da Liga Extraordinária, de Alan Moore. 

— Esse também está bom — falou ao avaliar a capa. 

— Mas não tem o apelo do Verne, nem as geringonças náuticas, nem um capitão Nemo. Usaram a mesma imagem para o capitão Nemo e Bentinho, repare só, basta tirar o turbante e trocá-lo por um monóculo e aí está: capitão Bentinho, o navegador dos mares do ciúme e dos oceanos da paranoia. 

— Deveras poético — concordou Arturo, no linguajar mil novecentista, que usavam para galhofas e chistes. 

— Deveras — Walter assentiu, enchendo mais uma vez os copos. 

— E por que não fizeram uma nova tradução? 

— Bem, primeiro porque dá muito trabalho. É muito técnico. Teriam que contratar um profissional e, ainda assim, não ficaria bom. Já foram feitas ótimas traduções do francês. Em matéria de tradução, eu cheguei à conclusão que se não for inédito ou não for melhor que a tradução estabelecida, é melhor não fazer. 

Arturo recostou-se no sofá e folheou o exemplar de Machado de Assis, em busca das figuras. Uma ilustração de Capitu, lânguida e sensual, lhe chamou a atenção. Ela estava com óculos de aviador, fazendo às vezes de bandana na cabeça. Os lábios grossos num biquinho, longas madeixas negras esvoaçantes, uma blusinha de seda pequena demais para os seios e calças muito justas, com listras verticais em tons de bege e marrom. 

— Houve um livro que me marcou muito em minha juventude, chamava-se Às Margens do Tigre. Não era nada demais, apenas o básico de um romance de aventura: jornada do herói, aquelas coisas. Era de um escritor francês chamado Henry Pelletier, mas a tradução que eu tinha em mãos era de Clara Liz, a famosa escritora. Diz-se que ela traduziu esse livro no começo de sua carreira, quando ainda se dedicava à tradução, tendo abandonado essa atividade assim que suas obras começaram a ganhar alguma notoriedade no mundo das letras. Não houve reedições do livro, editado pela finada editora Corifeu, mas, embora seja difícil, não é impossível encontrar um volume engordurado, perdido em algum sebo. 

— Ou no Cemitério dos Livros Esquecidos — atalhou Arturo, fazendo menção ao universo criado pelo espanhol Zafón. 

Walter sorriu à lembrança do cemitério aonde iam os livros que os leitores relegavam ao esquecimento. Suspirou pensando no volume que folheou muitos anos atrás e continuou sua narração: 

— Quando abri a editora, pensei em publicar esse livro e nas minhas primeiras férias, no recesso judicial do final de ano — Walter Mariot também era advogado, atuando em litígios editorias, defendia tanto autores (e gabava-se de ganhar o máximo possível para eles) quanto editores, grupos editoriais e corporações do entretenimento (e nesse caso, se gabava de perder com honra e minimizar as perdas litigiosas); de fato não era mal, na verdade era muito bom, sonhava ser escritor, mas deixou esse sonho no passado, numa pilha de manuscritos que hoje repousam no cemitério dos livros esquecidos, dedicando-se às causas satélites da literatura — fui até Paris, tentar comprar os direitos junto à Bleu Royale. A editora ficava na zona norte de Paris, na Place Nicolau Sabòli. Após passar por uma recepcionista sexagenária, quem me recebeu foi Yves Santamaria, o dono da Bleu. Yves foi muito simpático, me recebendo calorosamente, ele pareceu muito impressionado pelo fato de alguém ter se interessado pelos direitos daquele livro, tantos anos depois de seu lançamento, quando a obra, enquanto produto, devemos dizer sinceramente, e Yves não via Às Margens do Tigre mais do que um produto, já havia atravessado seu estágio de amadurecimento e declínio. Acho que ele considerou que houvesse alguma demanda para um texto como esse no Brasil. Eu lhe expliquei que o livro havia sido traduzido por Clara Liz, ao que ele disse que realmente não se lembrava desse fato, mas se recordava de ter lido um livro dela, uma tradução da Ronsac. Pareceu-lhe um grande lamento de mulher mal-amada. Quanto ao texto de Henry, só podia dizer que Henry era um cara muito excêntrico e ele só cederia esses direitos, se fosse com a minha cara. Pelletier vivia no châteaux de sua família, na região sudoeste, onde se elabora um excelente merlot há gerações. 

Walter tomou um gole de vinho e fitou Arturo. 

— E aí, você foi lá? 

— Bem, eu estava de férias na França e quem não gosta de um merlot? Fosse verão, teria sido perfeito. Mas, o fato é que encontrar essa propriedade foi mais difícil do que eu imaginei, afinal, na região de Bordeaux há quase dez mil châteaux. Por fim, depois de dois dias vagando por oceanos de parreiras, a encontrei, mas Henry Pelletier não estava. Fora ao médico e só retornaria no dia seguinte. Voltei para o hotel naquele dia, onde passei a noite. Desci para o lobby em busca de alguma companhia e conversei com um casal de turistas suecos, que vieram em busca da taça perfeita. Não me lembro mais os nomes deles, apenas que conversamos sobre Stieg Larsson, que por aquela época, estava nas listas dos mais vendidos em praticamente todo o mundo ocidental. Falaram que gostavam dos livros de mistério e da exposição que a Suécia estava recebendo graças à série Millenium. O fato é que conversamos aquelas coisas que se conversa com estranhos em hotéis. A mulher não era bonita, embora não fosse feia, não era um tipo que me prenderia o olhar. No dia seguinte, me apresentei ao châteaux Pelletier depois das dez e fui recebido pelo escritor pelo qual cruzei o oceano e atravessei estradas, que de outra maneira nunca veriam meus pés. Pelletier já era um ancião, me recebeu como quem recebe uma tempestade. Sua filha, uma mulher que parecia ter quase a idade dele (se é que tal coisa fosse possível), me pediu paciência, mas afinal, consegui lhe explicar o motivo de minha visita. O velho pareceu não se importar muito com coisa nenhuma, perguntou meu nome, achou que eu fosse espanhol e caminhou até uma porta que dava para uma das muitas adegas do casarão. Voltou com meia dúzia de garrafas de merlot safradas 1977, me entregou e disse simpatizar muito com a Espanha, começou então a contar histórias de Franco e dos horrores da revolução espanhola à que aquele povo foi vítima, de sua predileção pelos bascos (perguntou então se eu era basco, o que neguei peremptoriamente), a necessidade de a Europa permitir a criação do país basco e uma série de indagações de cunho nacionalista, sobre o porquê da não criação de um estado da Galiza independente, de uma Catalunha independente, de um estado aragonês independente e de um estado andaluz independente, entre outros, como Aragão e todas aquelas nacionalidades englobadas no que hoje se convencionou chamar Espanha. 

— O velho estava gagá, então? — Arturo interrompeu. 

— Não sei dizer se estava senil ou se sempre teve algum parafuso muito solto. O fato é que saí de lá com uma carta dirigida a Yves Santamaria, me dando os direitos de tradução para o português. Pelletier não entendeu muito bem o motivo pelo qual eu queria traduzir para o português o seu livro, que já ninguém lia e pressupôs, puramente pelo parentesco linguístico, que eu me tratava de um galego, afinal o galego e o português já foram uma única língua nos períodos perdidos na história. Acredito que ele criou essa história, pois não podia crer que eu fosse de Castela, o que em sua cabeça, seria uma filiação com Franco e com o inimigo máximo de toda a península ibérica. 

Arturo deixou o livro sobre a mesa e tornou a encher sua taça, se perguntando se ainda restavam algumas daquelas garrafas da safra de 1977 e se Walter lhe ofereceria gentilmente uma como um souvenir dessa história de uma busca, que levou um homem por lugares nunca imaginados, mas não parecia que seu editor estivesse inclinado a isso. 

— O fato é que uma semana depois eu estava voltando para o Brasil com a licença, que na Europa é barata. Na época, eu paguei cento e cinquenta euros. De posse do manuscrito em francês, procurei um dos autores da editora, o Celso Brandão, professor da Aliança Francesa. 

Walter se levantou, foi até a estante forrada de livros que estava atrás de si e pegou um volume fino e o entregou a Arturo. Às margens do Tigre. Uma capa bonita, uma pintura abstrata em tons pastéis, pinceladas vigorosas que revelavam as nuances das texturas das tintas. Outro livro sem editora. 

— Outro livro sem editora? 

— Pois é, acho que eu estou me tornando um especialista em edições sob demanda que nunca irão ver uma tiragem decente. 

— O que deu errado? O tradutor não era bom? 

— Não, não foi isso, o tradutor é ótimo, não há a menor dúvida disso. A história funciona. Tudo está onde deveria estar, flui tão bem como no francês, mas o problema não é esse. 

— Qual o problema então? 

— O problema é que o livro pelo qual eu me apaixonei não é o de Pelletier, mas o de Clara Liz. De alguma forma a alma de Clara Liz está ali, naquele trabalho, que só ela foi capaz de fazer e que ninguém jamais será capaz de reproduzir. De resto, o livro de Pelletier é um livro medíocre. 

Houve uma pausa. Cada um interpretando aquelas palavras à sua maneira. 

— E os amigos do seu filho? O trabalho deles de conclusão de curso, foi suficiente? 

— Foi, mas os examinadores chegaram à conclusão que o trabalho estava muito burocrático, como se eles tivessem o adaptado de um trabalho anterior. Um dos examinadores varreu a internet por dias em busca da obra original, sem sucesso. 

— Sorte ele não ter seu endereço. 

— Exato. Pois aqui estava uma obra-prima, enquanto que lhes entregaram uma cópia medíocre, assim como na aventura literária que compartilhei com você aqui hoje. 

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