Um Olhar
Não.
Eu não posso dizer o que é o amor. Palavras não foram destinadas
para isso. Os leitores vorazes, os devoradores de livros, estão
acostumados a criar mundos imaginários dentro de sua mente, mundos
que são incapazes de serem reproduzidos no cinema, pois cada mundo
imaginário criado pelo leitor é único, carregado com as
características da personalidade do leitor, suas experiências e sua
bagagem. Não, nem a essa classe de leitores é permitido descobrir
através das letras o que o amor é. De todas as intangibilidades o
amor é a mais impossível de descrever. Muitos tentaram e
fracassaram, apenas aos poetas é permitido alguma ventura nesse
intento, e os intelectuais para fugir do tema desenvolveram uma
palavra pejorativa para esse assunto, piegas.
Falar de amor é piegas. Melhor falar de cálculo, física quântica,
teoria literária, astrofísica, etc. Vejamos um exemplo de tentativa
de descrição, a Wikipédia, o sabe-tudo do século XXI, a
enciclopédia livre onde qualquer um pode disseminar sua ignorância
pela web:
Amor, é o nível ou grau de responsabilidade, utilidade e prazer com que lidamos com as coisas e pessoas que conhecemos.A palavra amor (do latim amor) presta-se a múltiplos significados na língua portuguesa.
E
continua por esse caminho árido de descrever amor filial, amor
platônico, compaixão, etc. O dr. Google dá a definição da
Wikipédia e segue com links como respostas do Yahoo Respostas,
Dictionary.com etc. Quer dizer que ninguém seria capaz de mostrar a
um robô, se um dia inventarem um robô inteligente (o que não
acredito), o que é o amor?
Uma
das primeiras lições dos romancistas best-sellers
é
show no tell, ou
seja, mostre em vez de dizer. Então, se é impossível explicar,
podemos dizer como o amor começa, começa com um olhar. Um olhar
para a garota na carteira ao lado na escola, um olhar para o banco da
frente na igreja, no ônibus, no metrô, na janela da vizinha. Não
há uma regra, essa é a regra de ouro. É um sentimento que surge à
partir do improvável, do mínimo, do menosprezado. Uma situação
que parece que não tem nada demais. Nada mais que um olhar. O
primeiro olhar não é mais do que um olhar de interesse, uma
curiosidade pura e simples. Não se trata de flerte, o flerte vem
depois. Desconfio que paixões começam em flertes, mas não
necessariamente o amor.
O
amor move o mundo. Não sou eu quem diz, é o mulato, o maior mulato
do Brasil, Machado de Assis, para ele "o amor é a lei da vida,
a razão única da existência" É um paradoxo, ele faz a Terra
girar e ao mesmo tempo, em situações especiais, faz o tempo parar.
É o amor. Terei de
me esconder ou de fugir. Assim
o argentino Jorge Luis Borges demonstrou sua sapiência. Mas onde ele
poderia se esconder do amor? O cupido é um demônio feroz, e ninguém
consegue descobrir um local onde ele não possa chegar por caminhos
retos ou tortuosos. Orfeu desceu até o Hades, o lugar dos mortos da
mitologia grega, em busca de sua amada Eurídice, mas nem mesmo nos
mais remotos e tenebrosos recônditos das trevas não pode se
esconder do amor, que lhe atormentou durante o restante de sua
existência após falhar em resgatá-la das mãos dos tiranos
do mundo dos mortos Antigo.
Se
não podemos escapar do amor, que nos busca até nas profundezas,
deixemo-nos levar por ele, e, quando encontrarmos um robô apaixonado
talvez possamos dizer que nada é impossível, e termino essa crônica
com outra pérola de Borges, pois talvez ele também tenha cansado de
fugir:
"Louvado
seja o amor no qual não há possuidor nem possuída, mas os dois se
entregam".
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Julieta no filme Romeo + Juliet |
Esta crônica foi publicada por ocasião do dia dos namorados no Portal de Notícias K3, de Araraquara e São Carlos.
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Mosaicos Urbanos - Contos |
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O Silêncio das Palavras - Antologia Especial da Scortecci |
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